sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Corre, Jesus, corre


Jesus ficou o ano todo trancado em um armário.
Hoje o tiraram porque está chegando o Natal; passaram nele o espanador, o lavaram, o enfeitaram e cobriram seu corpo com papéis coloridos.
Puseram-no na árvore com estrelas e velas entre guirlandas e neve feitas com fibra de vidro.
Agora que a família se distrai com álcool, Jesus desce da árvore e escapa pela janela!
Corre, Jesus, corre, para as pessoas não te alcançarem!
Que não te aconteça o que já te aconteceu!
Jesus escapa do templo onde o sacerdote o mantém preso e o vendedor de Bíblias o oferece em doze parcelas...
Jesus escapa das senhoras que só fazem pedidos, dos senhores que se lembram dele somente na igreja, da tristeza do trabalhador, do tédio do patrão, dos gordos... de barba de algodão que distribuem idiotices e nozes, dos falsos profetas que acalmam a consciência dos ladrões nos salões, dos chorões que o crucificam a cada ano.
Jesus escapa pela estrada em busca de uma nova Maria, para refugiar-se em seu seio e se salvar desta sociedade medíocre!
Corre, Jesus, corre, para as pessoas não te alcançarem!
Que não te aconteça o que já te aconteceu!

[Trecho de “Corre, Jesus, corre”, Facundo Cabral, CD Pateando Tachos]

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

A flor ...

...
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu. 
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.

É feia.
Mas é uma flor.
Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.




Drummond de Andrade - Fragmentos de  'A flor e a náusea'